INTRODUÇÃO
Para começo de conversa, interessante notar que, atualmente, em todos os setores profissionais, existe uma tendência muito forte à alta especialização, de modo que se observa constantemente a criação de novos ramos e sub-ramos de atuação nas mais diversas áreas.
Por exemplo, não seria exagero dizer que há um médico especializado para cada parte do corpo; um fisioterapeuta para tal ou qual parte da coluna; um dentista para tal ou qual problema dentário – ou, esteticamente, para tentar deixar os dentes mais brancos. Até mesmo alguns cozinheiros restringem seus cardápios a uma linha específica de pratos; e pululam por aí as padarias que se “especializam” em determinado tipo de produto, “sem glúten” etc.
Estudar as causas profundas desta tendência à especialização é tarefa bastante árdua, e não é o escopo deste artigo discorrer sobre isto. Mas uma coisa é certa: houve no transcurso dos séculos um aumento significativo da produção científica/acadêmica, acompanhado de maiores recursos técnicos, maior acesso à universidade e por aí vai…!
Assim, para um músculo em específico, no caso do médico ou do fisioterapeuta, pode haver uma infinidade de artigos, trabalhos, palestras, pesquisas, aparelhos, problemas, colóquios, doenças e curas. E não há profissional que dê conta de tamanho material. Da Medicina à padaria, percebe-se que as coisas têm funcionado deste modo.
Ora, com o Direito não é diferente! Que tamanha mudança houve desde os nossos mestres jurídicos fundadores do Ocidente, os romanos, quando se dividia o Direito simplesmente em Privado e Público. Hoje é diferente: um estudante da área sabe que tanto o Direito Privado como o Público foram-se fragmentando em dezenas e dezenas de sub-ramos – e há, até mesmo, quem decrete a falência da divisão entre Público e Privado.
Enfim, onde entra o agronegócio nesta trama toda? Pois bem, o agronegócio é com certeza uma das atividades comerciais/empresariais que mais se desenvolveu ao longo do tempo, e hoje ele carrega em si uma complexidade que exige um grupo de profissionais qualificados e, na medida do possível, especializados.
Neste sentido, cresce bastante o número de leis que versam sobre o agronegócio. E em virtude do aumento das leis, necessita-se de intérpretes, aplicadores, fiscalizadores. É comum, a propósito, encontrar-se escritórios de contabilidade que mexem só com o “agro”, bem como se encontra, felizmente, advogados que escolheram este setor como seu carro-chefe.
Dentre as leis e projetos legislativos que versam sobre o agronegócio, há um que é ainda pouco conhecido do público em geral, até mesmo porque ele ainda está em discussão no Senado e, em virtude da pandemia, os debates deram uma esfriada. Vejamos adiante do que se trata.
PROJETO DE NOVO CÓDIGO COMERCIAL E O AGRONEGÓCIO
O Projeto de Novo Código Comercial foi iniciado no ano de 2011, com a iniciativa doDeputado Vicente Cândido (PT/SP), sob o número 1.572/2011, depois foi para o Senado, inicialmente com Renan Calheiros, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O Projeto no Senado recebeu o número 487/2013 e está, desde fins de 2019, com a Relatora Sen. Soraya Thronicke.
O Projeto contempla um número bastante elevado de artigos referentes ao agronegócio, abordando desde conceituações e princípios até aspectos bastante detalhados da atividade rural, o que certamente trará muitas polêmicas nos pontos em que houver choque entre este Projeto e as leis já existentes que versam sobre a matéria em discussão.
Para quem tiver interesse de pesquisar o texto do Projeto, precisamente quanto ao tema do agronegócio, basta acessar o site do Senado e buscar os seguintes artigos: 26 até 31 (Seção V), os quais abordam os princípios aplicáveis ao agronegócio; bem como todo o Livro III, que vai do artigo 681 até 776 (relativos a uma enorme quantidade de temas).No total, mais de 100 artigos, o que não é pouca coisa! Daí se confirma a relevância do agronegócio como atividade comercial/empresarial.
O Projeto é muito ousado quanto ao tema do “agro”, pois pretende abarcar desde os conceitos básicos, passando pelos contratos agrários (arrendamento, parceria, depósito, etc.), até chegar aos Títulos e Cédulas, inclusive a famosa CPR. Ou seja, inevitavelmente o Projeto toca em temas que já estão regulamentados em outras leis, como: (I) Lei do Agro, n. 13.986/2020; (II) Lei da Cédula de Produto Rural, n. 8.929 /1994; (III) Estatuto da Terra, n. 4.504/1964, entre outras.
E, por isso, não são poucas as discussões que vem surgindo entre os estudiosos. Vale citar, por exemplo, o posicionamento do advogado Manoel Martins Parreira Neto:
Diante do exposto, a regência dos contratos agrários do agronegócio pelo Estatuto da Terra tem termo final, que será quando da aprovação integral do texto do PLS nº 487/2013, que promulgará o novo Código Comercial, regulando, de maneira própria, os contratos agrários relacionados à cadeia do agronegócio (…)Boas ou más notícias para o produtor rural, só o tempo dirá.[1]
Há, também, muitos estudiosos que têm elogiado bastante a medida:
O fato é que o agronegócio necessita de um novo código comercial para definir e assegurar situações práticas que atualmente acaba se resolvendo somente no judiciário, por analogia, com diversas leis esparsas (…) Posto isso, o novo código comercial deve ter um designo nutrir uma harmonia e modernização com todos os setores do agronegócio, observando não somente o grande produtor e empresas, mas também os pequenos produtores, obtendo uma estrutura de governança mais vantajosa para todos os setores do agronegócio e garantir a qualidade, quantidade na segurança dos contratos, evitando assim, eventuais problemas.[2]
Para finalizar, importante citar o posicionamento do jurista Fábio Ulhoa Coelho, um dos mais notáveis nomes à frente do Projeto:
Ulhoa Coelho ressalta que o projeto contempla apenas os princípios relativos a crise da empresa, mantendo a lei 11.101, tanto com as normas de direito material quanto de processual, aproveitando a oportunidade para mudanças na lei em questões como, por exemplo, falência. Na emenda sobre agronegócio, o coordenador diz que a proposta preserva o interesse do país na preservação da cadeia produtiva, que não se limita ao setor primário, mas envolve a indústria e o comércio. [3]
Enfim, há muito ainda o que estudar sobre o assunto, mas, de qualquer forma, a conclusão deste Projeto de Código Comercial, que não se sabe quando vai ocorrer, trará enormes mudanças para todos os envolvidos no agronegócio, não somente juristas, porém até mesmo produtores, indústrias e empresas em geral.
CONCLUSÃO
Com o intuito de concluir o presente texto, não se deve deixar de lado o impacto desta mudança legislativa na alocação do chamado Direito do Agronegócio dentro da Ciência Jurídica. Se levar-se em conta o posicionamento de muitos juristas atuantes no Projeto, a tendência é de que o Direito do Agronegócio se firme definitivamente como sub-ramo do Direito Comercial/Empresarial.
Para estudantes e profissionais do Direito isto significa muito, pois muita coisa que se discute em Direito Agrário, por exemplo contrato de arrendamento e parceria agrícola, passaria ao manto do Direito Empresarial, o que gera impacto, inclusive, na organização das disciplinas dos cursos jurídicos.
E no que se refere ao produtor rural, o que esperar? Bem, não dá para saber ainda, porquanto há muito o que ser discutido e aprimorado neste projeto. Contudo, algo inexorável é a presença constante de algumas das coisas que desde os romanos marcam o Direito, independentemente do número e nome de seus ramos e sub-ramos: o debate, a polêmica, a discussão, a retórica. Por enquanto fiquemos com elas.
Vinícius Pomar Schmidt. Advogado. Especialista em “Direito Constitucional” pelo Instituto Brasiliense de Direito Público; e em “Direitos Humanos, Democracia e Cultura” pela UFG.
[1] NETO, Manoel Martins Parreira. A Regência Atual dos Contratos de Arrendamento Rural do Agronegócio pelo Estatuto da Terra. CAMPO JURÍDICO, v. 6, n. 1, p. 1-18, 2018.
[2] PERIN, Fernando Luiz et al. A segurança jurídica no novo código comercial: análise dos contratos de integração avícola. 2016.
[3] https://www.fiesp.com.br/noticias/novo-codigo-comercial-projeto-proporciona-maior-seguranca-juridica-diz-coordenador-da-comissao-de-juristas/, acesso em 19/03/2020, às 10:53.